Com a morte do presidente venezuelano, Hugo Rafael Chávez
Frias, logo surgiu uma questão que de imediato passou a percorrer os meios de
comunicação: qual será o futuro da revolução bolivariana liderada pelo
comandante Chávez? Alguns meios, apressadamente, como que expressando mais um
desejo que fazendo uma séria análise de conjuntura, afirmaram que sem o
venezuelano os ideais e políticas bolivarianas de integração regional enfraqueceriam,
apostando assim no fracasso do modelo de integração em curso em nossa Pátria Grande.
Subitamente as reflexões sobre o futuro do chavismo, do bolivarianismo,
tornaram-se temas centrais das discussões políticas em nível mundial. Essa temática já havia sido levantada,
indiretamente, por Nestor Kirchner, ex-presidente argentino, que via um Chávez
muito personalista, e esboçava, assim, certa preocupação com o futuro de uma
Venezuela sem o companheiro venezuelano. A recente perda desta figura ímpar de
nosso macro-continente latinoamericano, e, sem exageros, também ímpar em nível
mundial, traz à discussão uma questão marcadamente filosófica sobre a
transcendência das idéias, ou seja, quanto uma idéia pode ultrapassar a seu
criador e resistir após ele? E se houver resistência, seria isto, também, uma
espécie de imanência das idéias? Cremos que para refletir bem sobre estas
questões é necessário pensar sobre a natureza mesma das idéias. Nesse sentido
uma das contribuições mais clássicas é a de Platão, ao passo que atribui às
idéias (ou formas) uma natureza própria, essencial, apartada da realidade
material, configurando-se como fundamento mesmo dessa realidade. A
independência das idéias criou certa dificuldade para a compreensão da
interdependência que, cremos, existe entre o ideal e o concreto. Uma abordagem
que parece colaborar para compreendermos esta inter-relação entre o concreto e
o teórico é a filosofia da ciência de Thomas Kuhn em sua Estrutura
das Revoluções Científicas. Nessa obra KUHN estabelece uma relação cíclica
na qual se insere a teoria científica como verdade relativa; a estrutura é
relativamente simples: há um primeiro momento de curiosidade, de pré-ciência, que motiva a pesquisa que
culmina numa teoria que se configura como paradigma, como ciência normal; as hipóteses desse paradigma são constantemente
verificadas, de modo que em algum momento surge um elemento novo que o põe em
cheque gerando uma crise, que por sua
vez é superada por uma mudança do paradigma científico, numa verdadeira revolução, que vai estabelecer um novo
paradigma, uma nova ciência normal,
que por sua vez entrará, novamente, em crise e impulsionará todo o processo
cíclico e dialético da ciência. A
essa estrutura compreendida pelo filósofo da ciência nos arriscamos a
correlacionar o tema das idéias e das teorias em geral, de modo a entendermos a
relação concreto-abstrato como algo dialético. Julgamos importante afirmar esse
caráter dialético, sobretudo na sociedade contemporânea, pelo fato de ter-se
consolidado uma concepção dualista entre o abstrato e o concreto, que ignora o
fato de que nenhuma teoria nasce por geração espontânea, mas como resultado de
uma análise crítica, metódica, cuidadosa e profunda da realidade concreta e
volta-se para esta realidade mesma. Parece-nos que a filosofia política também
o demonstra de modo satisfatório, uma vez que muitas vezes se apresenta
normativa, buscando orientar práticas políticas. Com maior ou menor acento a
filosofia política aparece, também como teopráxis,
ou seja, uma relação interna entre teoria e prática. Um exemplo contemporâneo
no campo político-econômico que parece demonstrar o que dizemos é a
teoria/ideologia dominante na maior parte do globo: o neoliberalismo; nascido da teoria quase mítica da mão invisível do mercado de Adam Smith,
passando pelo monetarismo intelectual e militante de Friedrich Von Hayek e
Milton Friedman. Essas teorias - a despeito de sua inconsistência teórica, o
que não abordaremos nestas linhas – encontraram um terreno fértil nas grandes
economias capitalistas a partir da década de 80’s do século passado e foram
adotadas como verdadeiros dogmas e aplicadas rigorosamente. Não nos parece
acaso que os Estados Unidos hajam empreendido, nesse contexto, uma verdadeira
cruzada anticomunista/socialista, pois se as idéias não influíssem na realidade
e não oferecessem elas mesmas uma leitura concreta da realidade, das condições
reais materiais de existência, por que se haveria de combatê-las? E é nesse
sentido que nossa reflexão se volta novamente para a revolução bolivariana na
Venezuela. O projeto impulsionado por Hugo Chávez, apesar de ter sido
grandemente ligado à sua imagem pessoal, como não poderia deixar de ser,
transformou-se, também e inegavelmente – as multidões nas ruas de Caracas para
despedirem-se comprovam isso – em um projeto coletivo, uma idéia transcendente,
mas profundamente concreta, palpável, imanente portanto. Quando se fala em
chavismo, pensa-se não apenas num projeto ideal, mas também em suas conquistas
sociais efetivamente realizadas. Não podemos prever com certeza qual o futuro
do chavismo ou do bolivarianismo na Venezuela, mas seja qual for – e esperamos
que seja um futuro de resistência e afirmação – será sempre uma síntese entre a
transcendência da teoria, do projeto e a imanência das condições reais
materiais da existência.