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sábado, 14 de dezembro de 2013

O que realmente querem os ucranianos?

De acordo com os mais diversos meios de comunicação, das mais variadas tendências, no último mês a Ucrânia vem enfrentando uma série de protestos populares. A razão desses seria a negativa do governo ucraniano em assinar o acordo de adesão à União Europeia (UE). Essa tese, porém, embora praticamente consensual, levanta uma série de questões que julgamos, no mínimo, interessantes à reflexão. Um dos primeiros questionamentos é exatamente sobre se o motivo real e fundamental dos manifestos seja a recusa do governo em aderir à UE ou se há outra causa interna que desconhecemos todos. Se, porém, o motivo central é mesmo a aproximação com a Rússia e o distanciamento da UE surgem outras questões não menos interessantes. A suposta estabilidade do bloco foi posta em xeque a partir da crise econômica que eclodiu em 2008 e ainda permanece, derrubando economias antes consideradas sólidas, provocando e agudizando problemas sociais nos países membros, mas mais notadamente nos que compõem a zona do euro. Ao observarmos as situações de países como Grécia e Espanha, que nesse contexto se tornam emblemáticos nos deparamos com realidades amplamente complexas que resultaram em políticas amplamente mercadológicas e antipopulares incapazes de conter o alto nível de desemprego (que ultrapassa a taxa dos 20% na Espanha e chegando a 27% na Grécia), a redução de gastos com serviços públicos para “honrar” compromissos com grandes bancos e entidades financeiras. Há um caos social e político instalado e que curiosamente parece ignorado pelos manifestantes ucranianos. Qual o motivo dessa ignorância? E qual o motivo de defenderem tão avidamente a adesão de seu país a um bloco tão fortemente afetado pela crise e que tem provocado o caos a que já nos referimos? Estariam, contra todas as evidências, crendo que isso lhes proporcionaria melhores condições de vida? Ou será o fetichismo de ampliar suas possibilidades de consumo com o livre comércio na região, mesmo sabendo que as economias menores são sempre prejudicadas pelo livre-mercado? Por enquanto, as respostas parecem difíceis de encontrar.

quinta-feira, 25 de julho de 2013

A ambiguidade da Política!!!


A vida em sociedade é marcada por uma série de fatores e elementos que necessitam de alguma organização a fim de garantir a convivência dos diversos indivíduos que a compõem. Nesse sentido e para responder a esse desafio surgem as teorias contratualistas, destacadamente em Tomas Hobbes e Jean-Jacques Rousseau. Embora a partir de princípios distintos ambos concordam que a sociedade civil se estabelece a partir de um contrato social; para Hobbes o contrato é feito entre os iguais para evitar a guerra de todos contra todos, o que estabelece um poder absoluto que garanta a organização da vida em comum. Já para Rousseau o contrato é feito para garantir a vontade geral, a fim de resgatar e garantir a bondade do estado natural do homem, prejudicada pelo surgimento da propriedade privada; aqui, o soberano é o próprio povo, diferentemente do absolutismo do Leviatã hobbesiano.
No entanto, antes deles, o mundo grego clássico já se debruçava sobre a importância de se dedicar à cidade, à polis, enquanto espaço de vida comum, de tal modo que é então que aparece o termo político, que tem relação direta com o interesse pelos rumos da cidade. O político era exatamente aquele que se dedicava a essas discussões, que participava diretamente; seu oposto era o idiotés, aquele que, vivendo na cidade, pouco ou nada se importava com seus rumos, preocupando-se apenas com seu mundo particular. Nesse contexto, e mesmo num período de crise, filósofos como Platão e Aristóteles desenvolveram, dentro de seus respectivos sistemas, um pensamento político de caráter mais normativo a fim de definir as bases do bom governo.
Essa normatividade, porém, torna-se insuficiente para compreender os fenômenos que permeiam o mundo da política. Já em Maquiavel essa normatividade esbarra numa leitura de certo modo pragmática. Em “O Príncipe” Maquiavel aborda as posturas que deveriam ser adotadas pelo governante, não a fim de garantir um modelo ideal, mas a fim de manter certa estabilidade política e social. Para tanto relativiza o comportamento ético do governante em favor de sua capacidade de governar. Isso lhe rendeu uma fama negativa como defensor de uma polêmica sentença: “os fins justificam os meios”. Essa má fama, no entanto, nos parece equivocada, pois, de fato, o momento histórico em que Maquiavel escreve “O Príncipe” é marcado por inúmeros conflitos e instabilidades políticas na Itália. Assim que a proposta dessa obra é como manter a estabilidade política em meio àquele cenário conflitivo. Aqui, talvez, apareça já uma evidência de que a política é ambígua, pois a fim de garantir a governança, a dissimulação seria uma necessidade constante. A despeito de concordar ou não com essa tese, a lógica interna é indiscutível.
O liberalismo também nos leva a verificar uma ambigüidade latente na política. Sobretudo com John Locke, ao afirmar que o papel do Estado, instituição política, é garantir o direito de propriedade individual, estabelece certa tensão entre o bem comum e os interesses particulares. Esse ideário penetrou profundamente no mundo político e social, passando a sustentar a burguesia nascente da Revolução Francesa e estendendo-se longamente até culminar no neoliberalismo, que, em última análise, cremos representar o fim da política, pois se para o liberalismo o papel do Estado é garantir a propriedade, para o neoliberalismo o Estado deveria desaparecer e conceder seus serviços à iniciativa privada (propriedade).
Uma das principais conseqüências do neoliberalismo, e parte mesma de seu ideário, é a despolitização. Essa despolitização favorece um messianismo político que nega a ambigüidade ao pretender uma política “certinha”, ou seja, que funcione linearmente. No entanto, a política não é algo linear, mas o contrário. A política é o espaço do debate, do contraditório e, como diria Hanna Arendt, das impossibilidades; na política podemos esperar tudo e nada. Se não há padrão, então como pensar a política?
Cremos que uma das primeiras coisas a fazer é nos desvincular do messianismo político. Não há puritanismo. O que podemos e devemos fazer é avaliar com seriedade e profundidade os discursos e as práticas políticas, tendo plena consciência de que são ambíguos. No entanto essa consciência não nos impede de ter e nos pautarmos por ideais políticos a fim de estabelecer um critério que nos permita perceber o que possibilita, na prática, um maior bem comum, e este maior bem comum é ele mesmo um critério de avaliação. Dessa forma é que poderemos avaliar mais coerentemente as implicações políticas e sociais de discursos e práticas políticas que se caracterizam por serem oligárquicas, de conciliação de classes ou de rupturas com as classes dominantes; cada uma dessas tendências gera graus distintos de bem comum. Há algumas variantes que devemos observar. Grupos oligárquicos que disputam o poder transparecem sua ambigüidade no discurso, pois enquanto seu discurso tenta travestir seus interesses como interesses gerais do povo, sua prática é sempre voltada para os interesses das oligarquias, e nesse sentido é coerente com suas teses; os que defendem e promovem verdadeiras rupturas podem, em tese, ser mais coerentes no que se refere ao bem comum, sem, todavia, deixarem de ser ambíguos, podendo não corresponder às expectativas de ruptura com as elites; os que promovem a conciliação de classes, como ocorre no governo brasileiro, são os mais ambíguos, pois tem tanto o discurso como a prática ambíguos, não fazem a ruptura, mas também não defendem vorazmente as oligarquias.
Não poderíamos concluir essa reflexão apontando uma norma para a boa política, exatamente porque cremos nessa impossibilidade. Assim que nos fiamos pela percepção de que a política é um fenômeno ambíguo, mas que nessa ambigüidade não deixa de ser necessário buscar aquilo que é fundamental para a boa política: o maior grau de bem comum.

quarta-feira, 27 de março de 2013

O chavismo e uma reflexão sobre a transcendência e a imanência das idéias!!!



Com a morte do presidente venezuelano, Hugo Rafael Chávez Frias, logo surgiu uma questão que de imediato passou a percorrer os meios de comunicação: qual será o futuro da revolução bolivariana liderada pelo comandante Chávez? Alguns meios, apressadamente, como que expressando mais um desejo que fazendo uma séria análise de conjuntura, afirmaram que sem o venezuelano os ideais e políticas bolivarianas de integração regional enfraqueceriam, apostando assim no fracasso do modelo de integração em curso em nossa Pátria Grande. Subitamente as reflexões sobre o futuro do chavismo, do bolivarianismo, tornaram-se temas centrais das discussões políticas em nível mundial.         Essa temática já havia sido levantada, indiretamente, por Nestor Kirchner, ex-presidente argentino, que via um Chávez muito personalista, e esboçava, assim, certa preocupação com o futuro de uma Venezuela sem o companheiro venezuelano. A recente perda desta figura ímpar de nosso macro-continente latinoamericano, e, sem exageros, também ímpar em nível mundial, traz à discussão uma questão marcadamente filosófica sobre a transcendência das idéias, ou seja, quanto uma idéia pode ultrapassar a seu criador e resistir após ele? E se houver resistência, seria isto, também, uma espécie de imanência das idéias? Cremos que para refletir bem sobre estas questões é necessário pensar sobre a natureza mesma das idéias. Nesse sentido uma das contribuições mais clássicas é a de Platão, ao passo que atribui às idéias (ou formas) uma natureza própria, essencial, apartada da realidade material, configurando-se como fundamento mesmo dessa realidade. A independência das idéias criou certa dificuldade para a compreensão da interdependência que, cremos, existe entre o ideal e o concreto. Uma abordagem que parece colaborar para compreendermos esta inter-relação entre o concreto e o teórico é a filosofia da ciência de Thomas Kuhn em sua Estrutura das Revoluções Científicas. Nessa obra KUHN estabelece uma relação cíclica na qual se insere a teoria científica como verdade relativa; a estrutura é relativamente simples: há um primeiro momento de curiosidade, de pré-ciência, que motiva a pesquisa que culmina numa teoria que se configura como paradigma, como ciência normal; as hipóteses desse paradigma são constantemente verificadas, de modo que em algum momento surge um elemento novo que o põe em cheque gerando uma crise, que por sua vez é superada por uma mudança do paradigma científico, numa verdadeira revolução, que vai estabelecer um novo paradigma, uma nova ciência normal, que por sua vez entrará, novamente, em crise e impulsionará todo o processo cíclico e dialético da ciência.         A essa estrutura compreendida pelo filósofo da ciência nos arriscamos a correlacionar o tema das idéias e das teorias em geral, de modo a entendermos a relação concreto-abstrato como algo dialético. Julgamos importante afirmar esse caráter dialético, sobretudo na sociedade contemporânea, pelo fato de ter-se consolidado uma concepção dualista entre o abstrato e o concreto, que ignora o fato de que nenhuma teoria nasce por geração espontânea, mas como resultado de uma análise crítica, metódica, cuidadosa e profunda da realidade concreta e volta-se para esta realidade mesma. Parece-nos que a filosofia política também o demonstra de modo satisfatório, uma vez que muitas vezes se apresenta normativa, buscando orientar práticas políticas. Com maior ou menor acento a filosofia política aparece, também como teopráxis, ou seja, uma relação interna entre teoria e prática. Um exemplo contemporâneo no campo político-econômico que parece demonstrar o que dizemos é a teoria/ideologia dominante na maior parte do globo: o neoliberalismo; nascido da teoria quase mítica da mão invisível do mercado de Adam Smith, passando pelo monetarismo intelectual e militante de Friedrich Von Hayek e Milton Friedman. Essas teorias - a despeito de sua inconsistência teórica, o que não abordaremos nestas linhas – encontraram um terreno fértil nas grandes economias capitalistas a partir da década de 80’s do século passado e foram adotadas como verdadeiros dogmas e aplicadas rigorosamente. Não nos parece acaso que os Estados Unidos hajam empreendido, nesse contexto, uma verdadeira cruzada anticomunista/socialista, pois se as idéias não influíssem na realidade e não oferecessem elas mesmas uma leitura concreta da realidade, das condições reais materiais de existência, por que se haveria de combatê-las? E é nesse sentido que nossa reflexão se volta novamente para a revolução bolivariana na Venezuela. O projeto impulsionado por Hugo Chávez, apesar de ter sido grandemente ligado à sua imagem pessoal, como não poderia deixar de ser, transformou-se, também e inegavelmente – as multidões nas ruas de Caracas para despedirem-se comprovam isso – em um projeto coletivo, uma idéia transcendente, mas profundamente concreta, palpável, imanente portanto. Quando se fala em chavismo, pensa-se não apenas num projeto ideal, mas também em suas conquistas sociais efetivamente realizadas. Não podemos prever com certeza qual o futuro do chavismo ou do bolivarianismo na Venezuela, mas seja qual for – e esperamos que seja um futuro de resistência e afirmação – será sempre uma síntese entre a transcendência da teoria, do projeto e a imanência das condições reais materiais da existência.

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

Democratizar os meios de comunicação!!!!



Há no Brasil um tema de substantiva importância que ainda se discute pouco, ou, pelo menos, ainda está bastante ocultado e não alcança a dimensão que lhe corresponde: a questão da mídia, da concentração midiática e da imperiosa necessidade de democratização dos meios. Essa discussão certamente toca em diversos interesses corporativos, de classe, portanto. A ausência desse debate compromete decisivamente uma efetiva e ampla democracia, uma vez que a informação, tanto em sua produção quanto no acesso a ela, é algo essencial para o desenvolvimento de uma sociedade efetivamente democrática no sentido lato do termo. Nessa discussão algo relevante é perguntarmos sobre a origem e a constituição dos meios de comunicação, que se transformaram em verdadeiros monopólios e/ou oligopólios, respondendo, assim, não à diversidade de opiniões e à pluralidade de vozes, mas a interesses das classes dominantes. Isso se evidencia, e mesmo se agrava, com as relações estreitas entre as maiores corporações midiáticas e governos ditatoriais. Um caso emblemático do que dizemos é a conhecida associação entre o magnata da comunicação Roberto Marinho e o governo ditatorial brasileiro, além das inúmeras irregularidades prováveis no processo de concessão da emissora. Outros veículos também mantiveram relações estreitas com a ditadura e serviam mesmo como veículo da propaganda oficial de “combate ao terrorismo” (leia-se oposição à ditadura). A maior parte da imprensa brasileira foi conivente com a ditadura e serviu de veículo condutor da sua famigerada e genocida política de segurança nacional, a tal ponto de que há diversos relatos históricos (escritos e/ou narrados) que atestam que jornais paulistas cediam seus carros para que o aparato repressor realizasse prisões arbitrárias e seqüestros. Nesse cenário, as concessões de radio e TV, as publicações de jornais e revistas foram concentrando-se cada vez mais em figuras e famílias que se dedicavam a defender a ditadura e combater o “comunismo”.  Uma visita ao acervo histórico da revista Veja, por exemplo, deixa evidente a ode que este meio fazia aos ditadores e o ódio de classe para com os trabalhadores e movimentos de resistência. Essa concentração midiática, porém, ultrapassou os limites da própria ditadura. Findando-se o dia ensangüentado que durou 21 anos, retornando a democracia política, permaneceu, porém, a ditadura da informação, ou seja, os meios de comunicação não sofreram os efeitos da democratização, permanecendo concentrados em grupos de famílias e mantendo o monopólio da informação. Mesmo a nova e atual Constituição Federal de 1988 não modificou substancialmente a estrutura comunicacional e midiática no Brasil. No entanto adverte que “Os meios de comunicação não podem, direta ou indiretamente, ser objeto de monopólio ou oligopólio.” (Art. 220, II, § 5º).
Esse cenário não é endêmico do Brasil, mas é sabido que em toda parte a grande imprensa hegemônica é composta por corporações monopólicas. Um país onde o enfrentamento dessa questão vem dando-se seriamente é o nosso vizinho: a Argentina. Notadamente um líder no que se refere à políticas de direitos humanos na região, também decidiu-se fortemente por uma política de democratização dos meios de comunicação audio-visuais. Duas medidas acertaram em cheio os interesses do maior grupo midiático argentino, o Grupo Clarín: a proposição e aprovação da Ley de Medios e a retomada pelo Estado da empresa Papel Prensa, responsável pela produção de papel jornal. Essa medida do governo kirchnertista vai absoluta e profundamente de encontro com os interesses econômicos do Clarín, que viu nessas medidas a perda de seus privilégios, o que, de pronto, resultou numa atitude militante oposicionista em relação aos Kirchner, primeiro Nestor, e agora Cristina. A tergiversação é, quase sempre, a linha editorial dos meios audio-visuais e escritos do grupo. Ler um fato no Clarín ou La Nación, pertencentes ao mesmo grupo e lê-lo em outro jornal como o Página 12 demonstra um abismo profundo. O modo como alguns jornalistas, que se classificam independentes (como se fosse possível), se referem ao governo e à pessoa de Cristina demonstram até certa hostilidade. Tentam, a qualquer custo, fazer crer que a Argentina está sob um governo autoritário que não respeita a liberdade de imprensa. Mas o fato é que a maioria esmagadora dos grupos midiáticos, inclusive alguns sócios do grupo Clarín em empresas de TV a cabo, apresentaram seus planos de adequação. O Grupo Clarín está praticamente só, contra a Ley de Medios. Daí pode-se concluir facilmente que, em definitiva, não é um ataque à liberdade de imprensa, mas uma política de democratização da produção e acesso à informação. Reiteradamente o Clarín recorre à SIP (Sociedade Interamericana de Prensa/Sociedade Interamericana de Imprensa) para que advogue pela liberdade de imprensa na Argentina. Porém, há que esclarecer que a SIP não é uma entidade de defesa da liberdade de expressão, uma entidade de jornalistas ou um órgão das Nações Unidas para o tema. A SIP é apenas e tão somente uma entidade que associa os donos dos jornais escritos das Américas, em outras palavras, os donos dos monopólios e/ou oligopólios da comunicação impressa. Resulta de fácil conclusão que quando a SIP se pronuncia não busca, verdadeiramente, defender a pluralidade e a liberdade de imprensa, mas os interesses corporativos de seus associados. Nesse sentido, as similaridades que se podem observar na postura clarinista e na postura dos meios dominantes brasileiros com relação ao governo não são mera coincidência, mas uma posição política e ideológica muito bem definida, e que representa a classe dominante latinoamericana, que se beneficiou das políticas liberais e neoliberais e que não tolera as mínimas mudanças que vêm acontecendo na região nos últimos anos.
Para falar localmente, mas pensando globalmente (como sugere em um de seus livros o grande Leonardo Boff), a imprensa brasileira faz ressoar em nossas terras a ideia de que a Ley de Medios argentina significa, sim, uma ameaça à liberdade de imprensa. Contudo, suas intenções se evidenciam numa pequena análise. Os monopólios e oligopólios midiáticos brasileiros enxergam com muito maus olhos a democratização do setor, de tal modo que atacando o governo argentino, e defendo os interesses de seu parceiro argentino, o Clarín, pretendem evitar que a discussão que se deu no país vizinho se instale também em nossa sociedade e que essa discussão faça emergir a necessidade premente de uma democratização legal dos meios. Por essa razão, a discussão sobre o controle social da mídia, previsto no polêmico PNDH 3 (Plano Nacional de Direitos Humanos), aparece timidamente na imprensa, e quando aparece é tratado, exatamente, como uma ameaça á liberdade de imprensa e um retrocesso na democracia. Uma leitura da Diretriz 22 do PNDH 3 demonstra que não há qualquer dispositivo que proponha o cerceamento da liberdade ou o controle e censura da mídia. O único item que poderia dar margem a tal interpretação foi revogado em 2010 (Decreto 7.177, de 12/05/2010). Todos os outros dispositivos dizem respeito à ampliação da produção e acesso à comunicação social, como produção regional de conteúdo, ampliação das licenças de rádios comunitárias, o que, de fato, não agrada aos donos do mercado da informação. Assim, que o chamado controle social da mídia prevê a defesa do direito à pluralidade, direito negado pela prática monopólica, mas garantido pela Constituição, e exigido por uma sociedade verdadeiramente democrática. Se considerarmos que 70% da mídia brasileira pertence a 6 famílias, como pode-se falar em verdadeira democracia quando alguns meios transformam a informação, a seu bel-prazer e de acordo com seus interesses, em verdadeiros dogmas de uma pequena oligarquia?
Personalidades como Julian Assange, fundador do site Wikileaks, Frank La Rue relator especial para a Promoção e Proteção do Direito à Liberdade de Opinião e Expressão (ONU), corroboram a tese de que é necessário superar a mentalidade mercantilista da comunicação e a concentração do mercado midiático e garantir o direito às mídias não corporativas, e, portanto, fora do espectro da classe dominante, com suas culturas e identidades. Para uma democracia de fato, que vá além do institucional, a democratização dos meios é mais que uma exigência, é uma necessidade. E como o governo não demonstra interesse em avançar no tema, cabe a nós colocá-lo em pauta.

LInks e referências:

Constituição da República Federativa do Brasil - 1988


quarta-feira, 1 de agosto de 2012

Ruptura democrática no Paraguai: um alerta à região?


Desde a década de 60 do século passado não se ouvia e nem se pensava mais na hipótese de golpes de Estado na América Latina, preocupação que emergiu novamente em princípios do século XX quando da frustrada tentativa de golpe na Venezuela.  Em junho deste ano – 2012 – fomos novamente surpreendidos, desta vez com um golpe de sucesso no Paraguai. Um processo sumaríssimo de deposição de um presidente cheio de contradições e manobras que procuraremos discutir no que segue. O presidente paraguaio, Fernando Lugo, tem um histórico de diálogo com movimentos sociais, defesa de um modelo de sociedade mais inclusivo e participativo desde seu trabalho como bispo católico. Sua eleição representou um capítulo mais na “guinada à esquerda” que marcou o cenário político sul-americano no início deste século, cuja característica entendemos ser a construção de um projeto político popular e participativo, de diálogo com os movimentos sociais, de uma rejeição do neoliberalismo. Cremos que isso se configura como uma “nova esquerda” que instrumentaliza o capital para atender às demandas sociais e vê o crescimento econômico na ótica da inclusão social. Nesse contexto podemos apontar nomes como Nestor Kirchner e Cristina Fernandes de Kirchner (Argentina), Evo Morales (Bolívia), José “Pepe” Mujica (Uruguai), Hugo Chavez (Venezuela), Rafael Correa (Equador), Lula e Dilma em nosso país e o próprio Fernando Lugo. É óbvio que todos e cada um desses personagens, podem, e devem, ser questionados e certamente encerram algumas contradições, mas é inegável o fato de que representam um projeto amplamente distinto daquele que se aplicou em nosso supra-continente latinoamericano nos anos 90’s do século passado. Esse percurso histórico é importante para percebermos as causas do que se passou recentemente na República do Paraguai.
A eleição de Fernando Lugo, como nos conta o sociólogo e cientista político argentino Atílio Borón, se deu com uma coalizão que compreendeu tanto pessoas comprometidas com aquele novo projeto de que falamos antes, quanto conservadores direitistas; a governabilidade de Lugo sempre esteve prejudicada, pois apesar das alianças, e mesmo por causa delas, não possuía uma base de apoio significativa no Legislativo, que em sua maioria é composto por conservadores. O apoio dessa ala a Lugo deveu-se às inúmeras concessões que ele mesmo fez à direita paraguaia, que inclusive ocupava a vice-presidência, com o liberal Federico Franco. Apesar das concessões a elite paraguaia demonstrava sempre insatisfação com as mudanças propostas por Lugo numa dimensão progressista. Surge então, para estes, a necessidade de derrubar Lugo, mas hoje, não é factível nenhuma tentativa sequer de golpe militar, era preciso, então, gestar uma peça de acusação que parecesse legal e constitucional. Assim se fez e o ápice dessa orquestração foi o trágico incidente de Curuguaty, onde houve um confronto agrário que resultou em 17 mortos e que teria contado com a interferência de pistoleiros atocaiados que teriam atirado em policiais e sem-terras a fim de provocar o “revide” de ambas as partes e gerar um fato com ampla repercussão. Esse incidente foi o ponto final para a apresentação do pedido de impeachment de Lugo por mau desempenho de suas funções. Embora a Constituição Paraguaia preveja esse tipo de instrumento (art. 225) e isso dê ares de legalidade e constitucionalidade à deposição do presidente paraguaio a questão não é tão simples como parece. Ao analisarmos a peça de acusação e assistirmos a alguns comentários fica evidente que, embora goze da áurea constitucional, o que houve no Paraguai foi um verdadeiro golpe de Estado. Vejamos.
Um processo devido para a destituição de um presidente, além de qualquer outro cidadão, deve apresentar a fundamentação e a comprovação das acusações, provas, o tempo devido para defesa. Acontece que no caso de Lugo há uma evidente carência de fundamentos e vemos repetidas vezes, citadas como fonte fidedigna para um processo dessa importância, os meios de imprensa, as coberturas jornalísticas. Sabemos que estas podem ser fontes importantes para impulsionar algum tipo de investigação, mas jamais ser usadas como provas ou fundamentos para um impeachment, sem qualquer outro tipo de documentação, testemunhas, depoimentos e instrumentos similares. Sobretudo se os meios de imprensa forem propriedades de grupos que detêm o monopólio da comunicação, como é comum, e, portanto, não diferente no Paraguai. A maior contribuição para desestabilizar o governo Lugo foi dada pelo jornal ABC Color, propriedade de Aldo Zucolillo, que é também acionista majoritário e dirigente do Grupo Zucolillo ligado ao agronegócio, considerando-se a questão agrária uma das principais bandeiras de Lugo e que se constituía como uma ameaça às vantagens dos latifundiários paraguaios e brasiguaios (brasileiros que vivem no Paraguai). Isso porque o Paraguai é o país que, possivelmente, possua a maior concentração de terras na região, além do fato de os latifundiários não pagarem impostos e os impostos imobiliários somarem apenas 0,04% da carga tributária do país, de acordo com o jornalista paraguaio Idílio Méndez Grimaldi. Assim, para não perder suas vantagens era necessário frear o processo participativo e o diálogo com os movimentos campesinos assumidos por Fernando Lugo. E como essa classe tem seus braços e membros no Congresso paraguaio o juízo político orquestrado contra o presidente traz como “argumentos” acusações genéricas que se orientam pela pauta midiática. Aparecem também outros argumentos genéricos como instigação à luta de classes, manipulação de campesinos, além de um trecho bastante significativo que expressa um juízo de valor bastante pessoal e pouco objetivo do relator que faz acusações ideológicas ao presidente Lugo desde seus tempos de bispo, como se, igual aos tempos ditatoriais, possuir divergência ideológica fosse crime, e nesse caso, passível de impeachment, além de responsabilizá-lo diretamente pelas mortes no conflito de Curuguaty. Apesar de todas as acusações o documento não apresenta nenhuma linha apontando provas documentais ou testemunhais, alegando que como os fatos são de notoriedade pública não necessitam ser provados. Não possuímos conhecimento suficiente do Direito para inferir sobre a questão, mas nos parece absurdamente equivocado que notícias de jornais, sobretudo dados os interesses de classe que já apontamos, sejam juridicamente suficientes como provas. E é exatamente aqui que está a perversidade e a evidência da instrumentalização golpista de uma norma constitucional: se não há provas como é possível contestá-las, refutá-las em defesa do acusado? Esse teatro jurídico institucional, maquiado de legalidade é nada mais nada menos que uma evidência da ruptura da ordem democrática paraguaia, pois já prevê, enquanto instrução e peça de acusação, a declaração do presidente Lugo como culpado. Não está previsto o julgamento, mas a condenação; e some-se a isso a escassez de tempo dada à defesa do presidente, que contou com cerca de 48 horas para articular a defesa, que, relembramos, não tinha provas a rebater. No entanto, por mais que esse golpe tenha se travestido há alguns atos falhos na peça de acusação que o evidenciam. Na crítica que fazem ao Protocolo de Montevidéu (Ushuaia II) do MERCOSUL (Mercado Comum do Sul), sobre o compromisso com a democracia no MERCOSUL, argumentam que o protocolo significaria uma ameaça à soberania do país ao prever que os países membro do bloco poderiam intervir em situações de ruptura democrática nas Partes (países do bloco) e aplicar sanções, cortar o abastecimento de energia, fechar fronteiras e/ou o espaço aéreo. Essa crítica soa como uma previsão do que aconteceria depois de concluída sua ação golpista. O documento ainda deixa escapar um descontentamento das elites latinoamericanas com os processos de integração regional que estão dando a nossos povos uma certa independência dos países do Norte e um afastamento de seus modelos sociais, políticos e econômicos, que como já dissemos em outra postagem, sempre foram, e seguem sendo, seus mundos paradigmáticos. Com a derrubada golpista de Fernando Lugo, presidente legítimo, democraticamente eleito pelo povo paraguaio, e a assunção de seu vice liberal, Federico Franco, o bom moço para os latifundiários do agronegócio paraguaio, configurou-se a quebra da ordem democrática, o que levou imediatamente a UNASUL (União de Nações Sulamericanas) e o MERCOSUL a suspenderem os direitos de participação do Paraguai desses mecanismos de integração regional, conforme prevêem seus protocolos, sem com isso proceder à adoção de sanções econômicas que prejudiquem ao povo paraguaio, como bem fizeram questão de destacar os chefes de governo dos países do MERCOSUL, que é o mecanismo de integração de mercado da região.

O ocorrido no Paraguai torna evidente que ainda há uma classe privilegiada descontente com os rumos que os países da América Latina, especialmente na do Sul, vêm tomando, que nem sequer é a saída do capitalismo, como defendiam há algumas décadas atrás, mas sua reorientação, o que nos parece ainda insuficiente, mas não menos meritório se fizermos comparações com os anos de chumbo do neoliberalismo no continente nos anos 1990’s. E levanta uma questão importante para refletir, pois no mundo contemporâneo e, sobretudo, em nossa Pátria Grande, não se cogita mais os golpes militares, e o golpe de Estado paraguaio, que é um golpe institucional, formalmente legal e constitucional – embora sem conteúdo real e/ou probatório – deixam entrever novo perfil de golpe que travestido por sua institucionalidade pretende ganhar legitimidade. Por isso cremos que a presidência de Federico Franco é ilegítima e seu governo não deve ser reconhecido, pois é resultante de um golpe parlamentar de Estado, não mais militar, mas ainda assim um golpe.
Essa reflexão acerca da situação paraguaia parece-nos soar como um grande alerta a toda a região, às políticas e projetos de integração, aos governos mais ousados e menos ousados no que toca às transformações sociais, pois evidencia que a direita não está dormindo, continua não suportando as mudanças sociais, por mínimas que sejam, continua articulando-se, e de maneira a ser capaz de encobrir um golpe sujo e vil com o manto das leis e das Constituições nacionais de cada país. Estejamos todos sempre atentos.

sábado, 23 de junho de 2012

Ecologia em Questão!!!


Nesta sexta-feira, 22/06/2012, encerrou-se a Conferência da ONU sobre o meio ambiente, as questões climáticas e o desenvolvimento sustentável, a Rio+20. O objetivo dessa Conferência era discutir, no âmbito planetário, o futuro que queremos. Essa discussão compreende uma série de questões ambientais, às vezes hegemônicas, às vezes controversas, que dizem respeito ao futuro do planeta e, sobretudo, ao futuro das espécies, da vida no planeta, uma vez que é sabido que o planeta resiste às mudanças climáticas, passa por períodos cíclicos de aquecimento e resfriamento, enfim... mas é sabido igualmente que algumas espécies não sobrevivem a essas alterações e são extintas. Nesse contexto, as alterações que o homem vem provocando no meio ambiente dão-se, segundo alguns geógrafos e climatologistas, em escala global, e segundo outros, em escala regional. Como não é nosso objetivo resolver ou adotar uma ou outra concepção, nos interessa realmente o que há de consensual nessas teses: as ações humanas colaboram na alteração do meio ambiente. E o paradoxo enfrentado pelas sociedades capitalistas contemporâneas, desde a realização da ECO92 e que ecoa – sem trocadilhos – na Rio+20, é a tese do desenvolvimento sustentável e da chamada economia verde. Num contexto de aguda crise econômica em que o modelo hegemônico capitalista/neoliberal está colapsando já era de se esperar que não houvesse avanços significativos na Conferência, de modo que as abordagens, petições, indagações, críticas, advertências, recomendações, apresentam as mesmas demandas de 20 anos atrás, e mesmo um agravamento dessas, dada a velocidade de produção e consumo nessas duas últimas décadas.
É quase consenso que é necessário repensar nossa relação com a natureza, saindo de um paradigma baconiano de dominação para um outro mais integrador e solidário. Nesse sentido nos valeremos de duas linhas filosóficas que auxiliariam, segundo entendemos, nessa leitura. Uma é a clássica filosofia pré-socrática, caracterizada grosso modo como filosofia da natureza. Nesta a questão fundamental é exatamente a natureza (physis), não como algo externo ao ser humano, algo a ser dominado, mas a preocupação com a physis se traduz numa procura, em reflexões sobre um princípio uno e unificante de tudo o que existe. Essa concepção é absolutamente integradora ao afirmar que tudo é composto do mesmo, ou seja, a natureza não está fora de mim, mas eu mesmo, meu corpo – que é físico - é constituído dela. A outra contribuição é a do filósofo e teólogo brasileiro Leonardo Boff, que já desde muito antes da “onda verde” vem refletindo sobre as questões ecológicas. Pelo menos duas de suas obras (Saber Cuidar – Ética do Humano – Compaixão pela Terra e Ecologia – Grito da Terra, Grito dos Pobres) versam sobre o tema da ecologia como cuidado com a Terra e com as pessoas da Terra. Nesse sentido de cuidado encontra-se a noção da Terra como casa comum, a única que temos, a qual dividimos, hoje entre 7 bilhões de moradores - e da qual precisamos cuidar ao mesmo tempo que de seus moradores–  o que desenrola-se, também, em uma ecologia social, o que exige, por sua vez uma consciência terrenal.
O termo consciência ambiental, bem como seus correlatos, ganham cada vez mais espaço, o que nos parece bastante positivo, no entanto, parece-nos, igualmente, que não há uma vinculação do(s) tema(s) ambiental(is) à uma consciência política e social.  Considerando a ecologia social de BOFF é necessário dizer que é, no mínimo, contraditória uma consciência ambiental que não considere, também, uma mudança radical do modelo de produção predatório, subentendido, capitalista. Assim, consciência ambiental exige, também, uma consciência política e social com perspectivas de mudança. Em síntese, reivindicar uma política ecológica exige uma reivindicação por políticas de mudanças sociais também.
Estamos sob a hegemonia do capital e isso significa que não há, mesmo num cenário crítico que perdura já há quatro anos, vontade de mudança de estruturas, de sistema, o que quer dizer também que a atual consciência ambiental é insuficiente. Os resultados da Rio+20 demonstram isso com certa clareza, uma vez que trouxeram poucas conclusões efetivamente impactantes, e por isso foram muito criticadas por movimentos sociais e ambientalistas (vejamos uma vez mais a separação entre o social e o ecológico) e mesmo pelo secretário geral da ONU, Ban Ki-moon, que depois, pressionado, mudou de opinião. Alguns sentir-se-ão decepcionados, mas esses resultados vagos e pouco efetivos  já nos pareciam demasiado previsíveis. E sabemos que o planeta (nossa casa comum) e a natureza (enquanto physis) podem esperar e que estejamos nós, os humanos, ou não eles vão continuar e encontrar meios de se restabelecerem, como demonstra o documentário “O mundo sem ninguém” do History Channel (disponível na internet). A pergunta que talvez devamos nos fazer é por quanto tempo mais as vidas ainda conseguirão esperar por mudanças que todos sabemos necessárias?
Para concluir, compartilhamos a reflexão de Mário Sérgio Cortella, em uma de suas participações em programas de TV, quando fala da necessidade de pensarmos em que passado queremos para nós, o que significa pensar em como o nosso futuro nos olhará: com gratidão ou decepcionado? Nós nos vamos... o mundo fica... que mundo vamos deixar quando formos?

domingo, 11 de março de 2012

Comissão da Verdade também tem que ser da Justiça!!!!


No último mês de Novembro (2011) foi promulgada a Lei nº 12.528/11, que cria a Comissão Nacional da Verdade. Embora seja um assunto de suma importância para toda a sociedade brasileira os grandes meios de comunicação se conformam em fazer pequenos e raros apontamentos sobre o tema. Assim mesmo, a referida Comissão pretende retomar, examinar e esclarecer aquilo que encontra-se, de certa forma esquecido e por vezes tergiversado, da história recente do Brasil: a ditadura militar,que contou  também com uma cumplicidade civil de alguns setores da sociedade e recebeu apoio de forças externas, a saber, da Operação Condor (plano de política externa dos EUA para a América Latina nos anos 60 e 70 do século passado).
A ditadura brasileira - que alguns setores conservadores desafortunadamente taxaram, alguma vez, de “ditabranda” – desenvolveu um forte aparato repressor que impossibilitava qualquer atividade e participação efetivamente democrática; institucionalizou uma política de “Segurança Nacional” que não tardou em traduzir-se em uma sistemática prática de violação de Direitos Humanos, crimes de genocídio e de lesa humanidade. É importante destacar que o que caracteriza essas violações e crimes é o seu caráter sistemático e mesmo institucional, com o que se configura inegavelmente aquela política de “Segurança Nacional”. Isso fez com que muitos que se opunham à ditadura fossem viver na clandestinidade, e é no marco da clandestinidade que vão surgir os diversos movimentos de resistência, que serão chamados pelo governo militar de “terroristas”.
No entanto, é necessário recordar que esses movimentos clandestinos se tornaram algo necessário não só para resistir ao regime ditatorial, mas também para garantir a sobrevivência de todos quantos encontravam-se constantemente ameaçados pelo Estado, e por organizações clandestinas, mas que também contavam com a participação massiva de militares, como os Comandos de Caça aos Comunistas. Esse apontamento se faz necessário porque, desde a promulgação da Lei de Anistia, de 1979, tem-se defendido uma tese equivocada de equivalência, ou seja, aqueles que foram presos, ou perderam outros direitos políticos e civis durante os períodos mais duros da ditadura foram anistiados, mas também os militares que eliminaram esses direitos, violaram os direitos humanos, cometendo crimes de genocídio e lesa humanidade. Afirmamos que essa equivalência não existe, pelo simples fato de os militares terem utilizado do aparato do Estado para reprimir a população civil e militares contrários à sua política.
Pelo dito, a Lei de Anistia (Lei Nº6.683/79) sofre inúmeras críticas, seja por movimentos de direitos humanos nacionais, seja por instituições externas, como a ONU (Organização das Nações Unidas), por meio de seu Alto Comissariado para os Direitos Humanos. Essas críticas devem-se ao fato de que a Lei de Anistia anda na contramão do direito internacional, o que uma análise rápida da Declaração Universal dos Direitos Humanos deixa evidente. O Estatuto de Roma, do Tribunal Penal Internacional (também no marco das Nações Unidas), embora posterior e não retroativo, torna possível tipificar as ações praticadas pelo Estado Brasileiro durante a ditadura militar, como crimes de genocídio e contra a humanidade, e, sobretudo, afirmar sua imprescritibilidade.
Assim, de acordo com a legislação vigente, a Comissão da Verdade tem como limite “examinar e esclarecer [...] graves violações de direitos humanos”, mas não tem nenhum poder denunciante. Para que os responsáveis por essas violações sejam levados à Justiça, como vem acontecendo na Argentina nos últimos anos, é necessária a imediata revogação da Lei de Anistia, evocada pelos militares para afirmarem seu perdão, o que podemos entender como manutenção da impunidade. Nesse sentido é bastante relevante o que disse a alta-comissária da ONU para os Direitos Humanos no ato de sanção da Lei que criou a Comissão da Verdade que “exortou ao Brasil a adotar medidas adicionais para facilitar o processamento dos supostos responsáveis por violações passadas aos direitos humanos compreendidas nos resultados do trabalho da Comissão. Tais medidas deveriam incluir a promulgação de novas leis para revogar a Lei de Anistia de 1979 ou declará-la inaplicável (grifo nosso), já que impede a investigação e o fim da impunidade por violações sérias dos direitos humanos, na contramão do direito internacional em matéria de direitos humanos” (tradução livre).

Fica então evidente que a questão de Justiça não é e nem pode, em hipótese alguma, ser confundida com revanchismo de esquerda – como já bem lembrou alguma vez a cidadã do MERCOSUL, grande expoente da luta pelos direitos humanos na Argentina, mais especificamente no que diz respeito à Memória, Verdade e Justiça, Estela de Carlotto (Presidente de Abuelas de la Plaza de Mayo): “os direitos humanos não têm lado, são de todos”. O fato de a própria ONU recomendar o juízo e o castigo dos responsáveis torna isso novamente evidente, porque ninguém que entenda minimamente de política diria que a ONU é uma organização esquerdista. Nesse sentido somamo-nos aos esforços e às vozes que vêm, ao longo dos anos, reivindicando que o Brasil assuma uma verdadeira e efetiva política de direitos humanos, e que nesse contexto a Comissão Nacional da Verdade seja, na realidade, da Memória, da Verdade e da Justiça, pois ao contrário do que setores conservadores da sociedade brasileira tentam fazer crer, ainda há feridas a sarar e injustiças a esclarecer, de modo que possamos ecoar um grito que se escuta ultimamente na Argentina: “Nem esquecimento nem perdão! Juízo e castigo”.

Referências:

Estatuto de Roma (Tribunal Penal Internacional/ONU): http://www2.mre.gov.br/dai/tpi.htm
Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos, sobre a Comissão da Verdade (em Espanhol): http://www.ohchr.org/SP/NewsEvents/Pages/DisplayNews.aspx?NewsID=11620&LangID=S