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quarta-feira, 1 de agosto de 2012

Ruptura democrática no Paraguai: um alerta à região?


Desde a década de 60 do século passado não se ouvia e nem se pensava mais na hipótese de golpes de Estado na América Latina, preocupação que emergiu novamente em princípios do século XX quando da frustrada tentativa de golpe na Venezuela.  Em junho deste ano – 2012 – fomos novamente surpreendidos, desta vez com um golpe de sucesso no Paraguai. Um processo sumaríssimo de deposição de um presidente cheio de contradições e manobras que procuraremos discutir no que segue. O presidente paraguaio, Fernando Lugo, tem um histórico de diálogo com movimentos sociais, defesa de um modelo de sociedade mais inclusivo e participativo desde seu trabalho como bispo católico. Sua eleição representou um capítulo mais na “guinada à esquerda” que marcou o cenário político sul-americano no início deste século, cuja característica entendemos ser a construção de um projeto político popular e participativo, de diálogo com os movimentos sociais, de uma rejeição do neoliberalismo. Cremos que isso se configura como uma “nova esquerda” que instrumentaliza o capital para atender às demandas sociais e vê o crescimento econômico na ótica da inclusão social. Nesse contexto podemos apontar nomes como Nestor Kirchner e Cristina Fernandes de Kirchner (Argentina), Evo Morales (Bolívia), José “Pepe” Mujica (Uruguai), Hugo Chavez (Venezuela), Rafael Correa (Equador), Lula e Dilma em nosso país e o próprio Fernando Lugo. É óbvio que todos e cada um desses personagens, podem, e devem, ser questionados e certamente encerram algumas contradições, mas é inegável o fato de que representam um projeto amplamente distinto daquele que se aplicou em nosso supra-continente latinoamericano nos anos 90’s do século passado. Esse percurso histórico é importante para percebermos as causas do que se passou recentemente na República do Paraguai.
A eleição de Fernando Lugo, como nos conta o sociólogo e cientista político argentino Atílio Borón, se deu com uma coalizão que compreendeu tanto pessoas comprometidas com aquele novo projeto de que falamos antes, quanto conservadores direitistas; a governabilidade de Lugo sempre esteve prejudicada, pois apesar das alianças, e mesmo por causa delas, não possuía uma base de apoio significativa no Legislativo, que em sua maioria é composto por conservadores. O apoio dessa ala a Lugo deveu-se às inúmeras concessões que ele mesmo fez à direita paraguaia, que inclusive ocupava a vice-presidência, com o liberal Federico Franco. Apesar das concessões a elite paraguaia demonstrava sempre insatisfação com as mudanças propostas por Lugo numa dimensão progressista. Surge então, para estes, a necessidade de derrubar Lugo, mas hoje, não é factível nenhuma tentativa sequer de golpe militar, era preciso, então, gestar uma peça de acusação que parecesse legal e constitucional. Assim se fez e o ápice dessa orquestração foi o trágico incidente de Curuguaty, onde houve um confronto agrário que resultou em 17 mortos e que teria contado com a interferência de pistoleiros atocaiados que teriam atirado em policiais e sem-terras a fim de provocar o “revide” de ambas as partes e gerar um fato com ampla repercussão. Esse incidente foi o ponto final para a apresentação do pedido de impeachment de Lugo por mau desempenho de suas funções. Embora a Constituição Paraguaia preveja esse tipo de instrumento (art. 225) e isso dê ares de legalidade e constitucionalidade à deposição do presidente paraguaio a questão não é tão simples como parece. Ao analisarmos a peça de acusação e assistirmos a alguns comentários fica evidente que, embora goze da áurea constitucional, o que houve no Paraguai foi um verdadeiro golpe de Estado. Vejamos.
Um processo devido para a destituição de um presidente, além de qualquer outro cidadão, deve apresentar a fundamentação e a comprovação das acusações, provas, o tempo devido para defesa. Acontece que no caso de Lugo há uma evidente carência de fundamentos e vemos repetidas vezes, citadas como fonte fidedigna para um processo dessa importância, os meios de imprensa, as coberturas jornalísticas. Sabemos que estas podem ser fontes importantes para impulsionar algum tipo de investigação, mas jamais ser usadas como provas ou fundamentos para um impeachment, sem qualquer outro tipo de documentação, testemunhas, depoimentos e instrumentos similares. Sobretudo se os meios de imprensa forem propriedades de grupos que detêm o monopólio da comunicação, como é comum, e, portanto, não diferente no Paraguai. A maior contribuição para desestabilizar o governo Lugo foi dada pelo jornal ABC Color, propriedade de Aldo Zucolillo, que é também acionista majoritário e dirigente do Grupo Zucolillo ligado ao agronegócio, considerando-se a questão agrária uma das principais bandeiras de Lugo e que se constituía como uma ameaça às vantagens dos latifundiários paraguaios e brasiguaios (brasileiros que vivem no Paraguai). Isso porque o Paraguai é o país que, possivelmente, possua a maior concentração de terras na região, além do fato de os latifundiários não pagarem impostos e os impostos imobiliários somarem apenas 0,04% da carga tributária do país, de acordo com o jornalista paraguaio Idílio Méndez Grimaldi. Assim, para não perder suas vantagens era necessário frear o processo participativo e o diálogo com os movimentos campesinos assumidos por Fernando Lugo. E como essa classe tem seus braços e membros no Congresso paraguaio o juízo político orquestrado contra o presidente traz como “argumentos” acusações genéricas que se orientam pela pauta midiática. Aparecem também outros argumentos genéricos como instigação à luta de classes, manipulação de campesinos, além de um trecho bastante significativo que expressa um juízo de valor bastante pessoal e pouco objetivo do relator que faz acusações ideológicas ao presidente Lugo desde seus tempos de bispo, como se, igual aos tempos ditatoriais, possuir divergência ideológica fosse crime, e nesse caso, passível de impeachment, além de responsabilizá-lo diretamente pelas mortes no conflito de Curuguaty. Apesar de todas as acusações o documento não apresenta nenhuma linha apontando provas documentais ou testemunhais, alegando que como os fatos são de notoriedade pública não necessitam ser provados. Não possuímos conhecimento suficiente do Direito para inferir sobre a questão, mas nos parece absurdamente equivocado que notícias de jornais, sobretudo dados os interesses de classe que já apontamos, sejam juridicamente suficientes como provas. E é exatamente aqui que está a perversidade e a evidência da instrumentalização golpista de uma norma constitucional: se não há provas como é possível contestá-las, refutá-las em defesa do acusado? Esse teatro jurídico institucional, maquiado de legalidade é nada mais nada menos que uma evidência da ruptura da ordem democrática paraguaia, pois já prevê, enquanto instrução e peça de acusação, a declaração do presidente Lugo como culpado. Não está previsto o julgamento, mas a condenação; e some-se a isso a escassez de tempo dada à defesa do presidente, que contou com cerca de 48 horas para articular a defesa, que, relembramos, não tinha provas a rebater. No entanto, por mais que esse golpe tenha se travestido há alguns atos falhos na peça de acusação que o evidenciam. Na crítica que fazem ao Protocolo de Montevidéu (Ushuaia II) do MERCOSUL (Mercado Comum do Sul), sobre o compromisso com a democracia no MERCOSUL, argumentam que o protocolo significaria uma ameaça à soberania do país ao prever que os países membro do bloco poderiam intervir em situações de ruptura democrática nas Partes (países do bloco) e aplicar sanções, cortar o abastecimento de energia, fechar fronteiras e/ou o espaço aéreo. Essa crítica soa como uma previsão do que aconteceria depois de concluída sua ação golpista. O documento ainda deixa escapar um descontentamento das elites latinoamericanas com os processos de integração regional que estão dando a nossos povos uma certa independência dos países do Norte e um afastamento de seus modelos sociais, políticos e econômicos, que como já dissemos em outra postagem, sempre foram, e seguem sendo, seus mundos paradigmáticos. Com a derrubada golpista de Fernando Lugo, presidente legítimo, democraticamente eleito pelo povo paraguaio, e a assunção de seu vice liberal, Federico Franco, o bom moço para os latifundiários do agronegócio paraguaio, configurou-se a quebra da ordem democrática, o que levou imediatamente a UNASUL (União de Nações Sulamericanas) e o MERCOSUL a suspenderem os direitos de participação do Paraguai desses mecanismos de integração regional, conforme prevêem seus protocolos, sem com isso proceder à adoção de sanções econômicas que prejudiquem ao povo paraguaio, como bem fizeram questão de destacar os chefes de governo dos países do MERCOSUL, que é o mecanismo de integração de mercado da região.

O ocorrido no Paraguai torna evidente que ainda há uma classe privilegiada descontente com os rumos que os países da América Latina, especialmente na do Sul, vêm tomando, que nem sequer é a saída do capitalismo, como defendiam há algumas décadas atrás, mas sua reorientação, o que nos parece ainda insuficiente, mas não menos meritório se fizermos comparações com os anos de chumbo do neoliberalismo no continente nos anos 1990’s. E levanta uma questão importante para refletir, pois no mundo contemporâneo e, sobretudo, em nossa Pátria Grande, não se cogita mais os golpes militares, e o golpe de Estado paraguaio, que é um golpe institucional, formalmente legal e constitucional – embora sem conteúdo real e/ou probatório – deixam entrever novo perfil de golpe que travestido por sua institucionalidade pretende ganhar legitimidade. Por isso cremos que a presidência de Federico Franco é ilegítima e seu governo não deve ser reconhecido, pois é resultante de um golpe parlamentar de Estado, não mais militar, mas ainda assim um golpe.
Essa reflexão acerca da situação paraguaia parece-nos soar como um grande alerta a toda a região, às políticas e projetos de integração, aos governos mais ousados e menos ousados no que toca às transformações sociais, pois evidencia que a direita não está dormindo, continua não suportando as mudanças sociais, por mínimas que sejam, continua articulando-se, e de maneira a ser capaz de encobrir um golpe sujo e vil com o manto das leis e das Constituições nacionais de cada país. Estejamos todos sempre atentos.

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