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terça-feira, 2 de agosto de 2011

O corpo como concessão e o aborto!


Recentemente vem crescendo no Brasil uma discussão polêmica que envolve a academia, os meios de comunicação e demais setores da sociedade civil, permeada por matizes éticos, filosóficos, jurídicos, culturais de grande relevância. Referimo-nos ao debate travado acerca do aborto e a possibilidade, ou não, de sua legalização. É uma questão que demanda ampla discussão, exatamente por compor-se de visões distintas, heterogêneas e contraditórias entre si.
O argumento principal em favor da legalização do aborto se pauta sobre a afirmação do direito da mulher sobre seu próprio corpo, cabendo, portanto, exclusivamente a ela optar pela gestação completa ou por sua interrupção. De fato, isso encerra algo de verdadeiro que, no entanto, cremos deva ser retificado. Tal retificação consistiria numa compreensão do corpo não como propriedade, como posse, mas como algo que é – embora contingente. Nesse sentido não há posse do corpo; o corpo é algo de necessário à minha existência histórica.
É a própria natureza que se encarrega de fornecer e de garantir a possibilidade da existência, de dar forma a aglomerados de moléculas de carbono, de maneiras tão distintas quanto são os seres vivos. Assim, o corpo como propriedade, como posse, só pode ser compreendido como o sendo da própria natureza e não dos seres particulares. 
O homem é um ser de natureza distinto de todos os demais por sua consciência, por sua racionalidade, porém, sujeito a toda dinâmica que lhe foi inscrita pela própria natureza. Nascimento, crescimento e morte são, naturalmente, independentes da vontade humana; no entanto parece haver uma retomada, inconsciente ou não, do ideal baconiano de dominação da natureza, inclusive no tocante a esse processo vital. O homem contemporâneo parece não ter mais como razoável que ainda haja processos naturais os quais não conseguiu dominar.
Há, assim, uma certa inconformidade com a natureza, e quando não se é possível dominá-la, esforça-se por tentar “ludibriá-la”. Queremos dizer com isso que o homem tem procurado, consciente ou inconscientemente, negar a naturalidade. A grande expansão do mercado estético no mundo contemporâneo é emblemática nesse sentido.
Abre-se novamente o horizonte para discutir a noção de corpo como propriedade, pois o ideal é, agora, “ter” o corpo que se “quer”. Não se pode deixar de apontar a proximidade desse tipo de pensamento com o liberalismo clássico, e nem poderíamos, pois que esta postura contemporânea está ideologicamente determinada pelo neoliberalismo. É corolário dessa ideologia que a liberdade consiste, ainda, no “laissez faire”, cuja concepção de liberdade tem como premissa a liberdade de possuir, ter propriedade. Tudo é propriedade: eu tenho um corpo; tenho liberdade; tenho igualdade de oportunidade.
Retornemos, então, à questão do aborto. Se o corpo é compreendido como propriedade é preciso afirmar que uma possível gravidez provocará mudanças no corpo, na propriedade. Ora, se a mulher diz: o corpo “é meu”, pode escolher entre manter, ou não, algo que vá alterá-lo significativamente, e assim o pré-embrião, o embrião, o feto, o nascituro podem ser, então, absolvidos ou acusados de violação do direito soberano à propriedade. Dessa forma o aborto se justifica como uma defesa do direito natural de propriedade do corpo. Isso posto deve-se considerar que o que é abortado o é como que por uma sentença dada contra seu crime de atentado à propriedade corporal da mulher.
Se, porém, concebe-se o corpo como aquilo que se é, a compreensão da questão muda consideravelmente. A filosofia concebe o homem como um ser complexo. A Filosofia Clássica o concebe como corpo e alma, matéria e forma...; as filosofias materialistas e existencialistas o concebem como um ser puramente de existência, sem quaisquer elementos metafísicos. O que há de comum é o fato de demonstrarem que o homem não tem corpo, mas que este é parte, complementar para uns e fundamental para outros, da existência mesma dos seres, destacadamente os seres humanos.
O termo é, certamente, insuficiente, mas talvez possamos pensar a corporeidade como concessão da natureza aos seres individuais, e tal deve ser administrada; e no caso humano com aquilo que de mais excepcional a natureza dotou o homem, a razão. É esta “benesse” natural que nos torna capazes de compreender uma gama cada vez maior de fenômenos e processos naturais; no entanto, esse conhecimento não deve, necessariamente, seguir a máxima de Bacon. A natureza não tem de ser dominada, mas em alguns momentos deveria, apenas, ser contemplada, pois, apesar de toda cientificidade moderna e contemporânea, não seria equivocado afirmar que ainda há muito de mistérico, ou no mínimo, de incerto.
Ocorre, pois, que essa concessão traz algumas determinações imutáveis. Quando a natureza define que o indivíduo humano será mulher ele o será por toda a existência, assim como o inverso, o que exige uma auto-aceitação, pois o ser humano não tem um corpo masculino ou feminino, mas, sim, é homem ou é mulher, e cada conformação corporal tem sua dinâmica já definida naturalmente – o que hoje se explica grandemente com o avanço das pesquisas em genética. Coube, por acaso da natureza, às fêmeas de cada espécie de seres vivos – com raríssimas exceções – gestar novos indivíduos entre seus pares, novas existências, o que se aplica, assim, também à mulher.
A lei natural não obriga a fecundação da mulher que, dotada de razão, é livre para optar ou não por ela; inversamente, uma vez fecundada, consciente de seu corpo como concessão, deve perceber-se como sujeito indispensável da dinâmica natural de geração de uma outra existência absolutamente dependente dela. Essa compreensão é capaz, portanto, de permitir um vínculo com essa nova existência em devir na sua própria corporeidade, na sua própria existência. Aí, então, o pré-embrião, o embrião, o feto, o nascituro, não são aqueles que atentam contra o direito absoluto à propriedade corporal, mas seriam aquela existência que realiza a potencialidade única da mulher, que é a gestação e a realização de uma outra existência.
Decorre daí que o aborto se configura como negação à lei natural mesma e não, apenas, à moralidade, ou moralismo conservador e/ou religioso, dado que a natureza lhes é anterior e tem por princípio conservar-se a si mesma antes de quaisquer convenções humanas.

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